CÂNCER DO ÂNUS

Antes de conceituar o câncer do ânus, é importante definir o que é o canal anal (ou ânus) e diferenciá-lo do reto, posto que muitos de nós fazem confusão entre reto e ânus.

De um modo bastante simplificado, podemos definir o reto como o segmento final do intestino grosso, distinguindo-se deste por se localizar dentro da pelve. Tem por finalidade ”armazenar” as fezes e possibilitar as defecações apenas no momento apropriado.

Já o ânus, de um modeo bastante simplificado, é um conjunto de estruturas que conectam o reto ao meio externo, como se fosse um estreitamento do reto, que “passa dentro” de dois músculos anelares – os esfíncteres anais – que se abraçam e possibilitam tanto o “fechamento do reto” como a sua abertura para que as fezes passem.

Seu revestimento também é uma transição, pois ocorre a transformação gradual do epitélio cilíndrico – que constitui a camada mais interna e superficial do reto – e do epitélio escamoso que reveste as nádegas, ou seja, a nossa pele.

O carcinoma do canal anal se origina dos epitélios escamoso (mais comum), do cilíndrico e também do epitélio de transição entre estes, epitélios estes que revestem o canal anal.

O carcinoma espinocelular ou CEC (que se origina no epitélio escamoso, ou seja, “na pele”) responde por cerca de 65% dessas lesões. O carcinoma de células transicionais correspondem a cerca de 25%, e os 10% restantes são causados por lesões muito raras, como melanomas, tumores neuroendócrinos ou carcinomas basaloides.

O CEC de canal anal é um tipo raro de câncer e corresponde a somente 1,5% dos tumores do aparelho digestivo e entre 2 e 4% dos tumores colorretais.

Assim como no caso do câncer do colo uterino, com o qual compartilha os mesmos fatores de risco na maioria dos casos – tem tido sua frequência reduzida nos últimos anos e taxas de cura cada vez mais altas com a evolução dos tratamentos disponíveis.

Há um maior número de casos no sexo feminino e as mulheres têm uma maior incidência nos grupos etários maiores que 50 anos. No caso dos homens, é mais comum entre 20 a 49 anos.

Há também um claro aumento da incidência do CEC do canal anal relacionado com a epidemia de AIDS, felizmente também reduzindo à medida em que a maior parte dos soropositivos não chegam mais a desenvolver a AIDS, com o advendo da terapia antirretroviral combinada (o célebre “coquetel”).

Evidencia-se também uma incidência até vinte e cinco vezes maior nos homossexuais masculinos e HSH (homens que fazem sexo com homens), se comparada àquela em homens heterossexuais.

O desenvolvimento do CEC de canal anal é multifatorial. Diversos fatores associados foram identificados, como infecção pelo HPV, sexo anal receptivo, número de parceiros sexuais ao longo da vida, tabagismo, antecedente de verrugas genitais ou outras DST, imunossupressão por transplante de órgãos e quadros de imunodeficiência.

A infecção pelo HPV é o mais importante fator causal no desenvolvimento de CEC e é discutida em texto específico neste site.

Múltiplos estudos demonstraram a presença de infecção pelo HPV em espécimes de CEC de canal anal em cerca de 85% dos pacientes. Atualmente, cerca de 100 subtipos de HPV foram identificados. Destes, pouco mais de 40 podem afetar a região anorretal, vulvar, vaginal e peniana, além do colo uterino.

Os subtipos de HPV são divididos em alto risco de malignização 16, 18, 31, 33, 35, 39, 45, 51, 52, 56, 58, 59 e 68 e baixo risco ou sem risco 6, 11, 42 e 44. O subtipo 16 responde por 70% dos CECs e o 18 por pouco menos de 10%.

Estima-se que 20 milhões de indivíduos estão infectados pelo HPV e que de 50 a 75% da população sexualmente ativa entrará em contato com o vírus em algum momento de sua vida. Felizmente, na maioria destas pessoas o vírus não se manifestará.

Na região anal, estima-se que 1% dos indivíduos expostos ao vírus expressará a doença na forma de verrugas anais e que de 10 a 46%, manifestarão a doença em sua forma latente ou subclínica, casos que, na maioria das vezes, não serão identificados.

A apresentação clínica do CEC de canal anal se expressa por uma gama de sintomas que vão desde sintomas discretos como coceira e desconforto na pele que recobre a região ao redor do ânus e o períneo. Pode ainda haver presença de massa na região anal, sangramento e dor, de leve a intensa.

Frequentemente as queixas relatadas pelos pacientes são as mesmas encontrados nas doenças anais benignas, como hemorroidas, fístulas ou fissuras anais. Algumas vezes,  atrasando o diagnóstico e trazendo graves consequências para o prognóstico destes pacientes. Cerca de 20% destes pacientes não apresentam quaisquer sintomas.

O estadiamento da lesão é o mais importante fator para que se possa estimar a sobrevida.

Portanto, a realização de exame proctológico minucioso é fundamental.

Na realização desse exame alguns parâmetros são de especial importância para o estadiamento do tumor: tamanho do tumor, sua mobilidade e sinais de infiltração de órgãos ou estruturas vizinhas, presença de linfonodos regionais, inclusive inguinais (ínguas, que costumam estar aumentadas, endurecidas e, muitas vezes, dolorosas).

Uma vez que o tratamento recomendado como sendo o de primeira linha para o tratamento do CEC do canal anal não envolve cirurgia, o estadiamento destas lesões é essencialmente clínico.

A sobrevida em cinco anos de pacientes submetidos a radioquimioterapia para tratamento destas lesões é de 80 e 50% para tumores menores que 2 cm e maiores que 5 cm respectivamente, independente dos outros parâmetros clínicos, evidenciando a importância do exame físico minucioso nestes pacientes.

O tamanho do tumor é geralmente definido durante exame clínico. Exames de imagem como tomografia computadorizada ou ressonância nuclear magnética são úteis para definir infiltração em órgãos adjacentes ou estruturas como músculos esfincterianos.

A ultrassonografia endoanal pode ser útil e foi considerada mais eficiente que o exame físico no diagnóstico de infiltração de estruturas ou órgãos adjacentes.

A tomografia computadorizada deve ser realizada antes do tratamento para avaliar comprometimento à distância.

Entretanto, a realização do PET-CT, um exame especial que combina dois tipos de tomografia realizados ao mesmo tempo – apresenta maior sensibilidade, evidenciando metástases que em até 25% das vezes não seriam evidenciadas pela tomografia convencional.

Infelizmente, trata-se de exame oneroso e pouco disponível. Em Brasília há alguns aparelhos que fazem o exame, infelizmente ainda apenas na rede privada.

Quase 20% dos pacientes com linfonodos inguinais acometidos não identificados ao exame físico nem na tomografia se mostraram positivos ao PET-CT, com impacto relevante no estadiamento, prognóstico e planejamento do tratamento, particularmente na definição dos campos irradiados à radioterapia.

Até há poucos anos, o tratamento preconizado para o carcinoma de células escamosas do canal anal era a ressecção abdominoperineal do reto, uma cirurgia de grande porte, onde era realizada a remoção do aparelho esfincteriano (ou seja, do ânus), com consequente necessidade de colostomia definitiva (operação de Miles).

Esta cirurgia apresentava resultados razoáveis para a época. A sobrevida livre de doença variava de 40 a 70% com taxas de recidiva que chegavam a 50% e que aumentavam significativamente quando existia metástase para as cadeias linfáticas.

A necessidade de conviver com uma colostomia definitiva, além das sequelas sexuais e urinárias, que frequentemente acompanhavam o paciente ao longo de sua vida implicavam em grande desconforto para os pacientes.

Felizmente, nos últimos vinte anos, esse procedimento deixou de ser o tratamento de escolha para este tipo de câncer, dando lugar ao tratamento radioquimioterápico combinado exclusivo. Ou seja: radioquimioterapia apenas, sem cirurgia.

A associação da radioterapia e quimioterapia possibilita a preservação do esfíncter anal, evitando-se a cirurgia de ressecção abdominoperineal do reto na maioria dos casos. Essa cirurgia é reservada atualmente para os casos em que haja persistência ou recidiva do tumor, quando houver destruição completa do esfíncter anal ou nas situações em que não seja possível o tratamento radioquimioterápico (toxicidade acentuada por exemplo).

Nos casos de recidiva ou persistência tumoral com possibilidades de se realizar a cirurgia de resgate, os resultados evidenciam bom controle local e aumento da sobrevida neste grupo de pacientes, com taxas de sobrevida média em cinco anos de 40% e de recidiva local próxima a 50%.

O procedimento é geralmente associado com morbidade pós-operatória significativa.

Os pacientes devem ser bem selecionados, pois, se não houver uma possibilidade razoável de se obter ressecção completa, outras opções terapêuticas devem ser consideradas.

A excisão local pode ser considerada para os tumores do canal e margem anal menores que 2 cm de diâmetro, bem diferenciados, sem evidência de disseminação linfática (T1N0) e sem envolvimento do esfíncter. Ou seja: casos bastante selecionados.

A resposta clínica deve ser avaliada após 6 a 8 semanas do término do tratamento radioquimioterápico combinado, em que em torno de 60 a 85% dos pacientes obtêm resposta clínica completa.

No entanto, nos casos em que a resposta não é completa mas existe uma regressão parcial importante, pode-se seguir esses pacientes mais frequentemente, sabendo-se que a regressão completa após radioquimioterapia pode ocorrer em até 3 a 6 meses.

Ou seja, a falta de resposta completa inicial não deve suscitar abordagens radicais, pois um percentual significativo de pacientes leva mais tempo para obter resposta completa e podem obter o controle da doença, mais tardiamente.

Habitualmente, o exame clínico digital é suficiente para essa avaliação, mas em casos de dúvida, biópsias da área podem ser realizadas para confirmação diagnóstica.

Quando houver evidência clínica de progressão da doença, como por exemplo, o desenvolvimento de uma úlcera com bordas endurecidas após cicatrização da lesão prévia, dor que aumenta progressivamente no local onde havia antes o tumor ou na presença de um claro tumor residual, antes de indicação cirúrgica radical, deve-se considerar a realização de biópsias para confirmação diagnóstica e reestadiamento da doença local e à distância.

Os fatores relacionados a um pior resultado após a terapia combinada são a presença de doença linfonodal, o tamanho do tumor original e a persistência da lesão tumoral. Além desses, a interrupção na terapia combinada, por qualquer motivo, é também um fator de mau prognóstico.

Aproximadamente 12% dos casos irão desenvolver metástases à distância, geralmente para o fígado e os pulmões.

Os pacientes com doença metastática ou recorrente sem possibilidade de tratamento cirúrgico, devem receber quimioterapia, usualmente com uma combinação de cisplatina e 5-fluorouracil.

No entanto, a resposta é raramente completa e usualmente de curta duração, com sobrevida média após o diagnóstico em torno de 9 a 12 meses. Esses pacientes costumam apresentar uma doença mais agressiva. Felizmente, são minoria.

Outras neoplasias menos comuns da região anorretal compreendem: adenocarcinoma, doença de Paget, melanoma, tumor de células estromais gastrointestinais (GIST), tumores neuroendócrinos e o tumor de Buschke-Lowenstein.

As estratégias de tratamento são baseadas na localização anatômica e no tipo do tumor.

Como são bastante raros, fogem ao escopo deste texto.

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